Voltar



Floxera: A Videira e a Resistência 

Francisco Silva





"Dizem que este vinho enlouquece quem o bebe e é prejudicial à saúde, o que, se fosse verdade, há muitos anos que a população destas áreas tinha desaparecido. Dizem, também, que só produz de três em três anos, o que não é verdade, porque o vinho americano branco (o que se está a usar mais) resiste melhor ao míldio e ao oídio e produz bem todos os anos."


A videira era o centro do jardim. O pé subia e os seus braços estendiam-se por largos metros. As folhas e os cachos verdes ofereciam uma sombra para almoços, lanches e conversas de ocasião. Debaixo deste teto improvisado, família, conhecidos e amigos juntavam-se à corrida desenfreada dos cães. Os ramos só paravam nas paredes da cozinha exterior, onde todos os dias se preparava a comida para os animais. O jardim enchia-se de tons de verde até setembro, altura em que um grupo de homens recolhia as uvas. O vinho não era o melhor, mas a resistência da videira compensava o travo carrascão. A uva americana pegava em todas as casas, da mais humilde à mais abastada. Em anos rigorosos, pelo clima ou por doenças repentinas nas plantações, esta uva rasca permitia que os lavradores produzissem o seu próprio vinho.




Sem nenhuma explicação óbvia, via-se muito pé de videira americana na região de Aveiro: em pequenos jardins, por cima de portões ou em baldios esquecidos entre as casas. As pragas iam e vinham, mas a uva crescia sempre com a mesma força. Em meados da década de 30 do século XX, os grandes produtores de vinho da Bairrada, com extensas propriedades mais a sul, atravessavam dificuldades. Em 1934, Salazar proíbe a plantação das videiras americanas que não se destinassem a enxertos de castas portuguesas. Para garantir que o decreto era cumprido, a guarda entrava nas povoações e assegurava que todas as plantas que não cumpriam esta condição eram substituídas, enxertadas ou arrancadas pela raiz. O Estado Novo alegava que esta uva constituía uma praga, uma espécie invasora que destruía as restantes culturas. A superstição ficou por provar, mas a estratégia parecia saída das melhores mentes de Chicago: eliminar a produção própria dos lavradores e empurrar a economia, obrigando-os a aceitar os preços dos grandes produtores dos concelhos vizinhos.  

O jardim do meu avô, que comecei por descrever, fica a poucos quilómetros de Válega, freguesia do concelho de Ovar. Em 1939, anos depois da medida ter entrado em vigor, a guarda continuava a enfrentar a resistência de uma comunidade que se recusava a perder os seus pés de videira. A 15 de maio desse ano, um grupo de militares investiu contra a população e acabou cercado no adro da igreja. Os sinos tocaram e, depois da chegada dos reforços, os lavradores responderam com pedras às rajadas de tiros. Dois deles foram atingidos pela guarda e acabaram por não resistir: Jaime da Costa, pedreiro, tinha 18 anos, e Manuel Maria Valente de Pinho, agricultor, tinha 38. ​​​​​​​









No centro de Válega, mais tarde, ergueu-se uma lápide com o nome destes homens. O Museu Etnográfico da freguesia tem organizado todos os anos uma recolha de uva americana, e recentemente desafiou a comunidade a encenar o episódio trágico. Para isso encomendaram-se trajes da época e fardas antigas da guarda. A atribuição de papéis não seguiu nenhum critério. Em Válega, como nos contam neste museu, não se fala muito sobre os acontecimentos de 1939, e os testemunhos na primeira pessoa vão escasseando. 

A minha mãe deu aulas nesta freguesia durante 20 anos, mas só muito mais tarde me cruzei com os relatos destes dois assassinatos. Um artigo de Sara Dias Oliveira, publicado no Público, motivou uma conversa com o meu avô, que tinha uma videira americana no centro do seu jardim e que estaria, por isso, certamente a par destes história. Contou-me, nessa ocasião, que o seu jardim já tinha tido muito mais uva americana, mas que um dia, sem saber bem porquê, decidiu cortar todos os pés que percorriam os dois muros da casa. Deixou apenas um, que acabaria por se tornar um símbolo da minha infância. Tentei perceber a origem desta videira multirresistente e cheguei com facilidade ao nome de Augustin de Candolle. Botânico francês e amigo íntimo de Jean-Baptiste Lamarck, embarcou no séc. XIX para os Estados Unidos e, no regresso à Europa, trouxe consigo vários tipos de uva, entre os quais a videira americana. O seu projeto mais ambicioso é um estudo exaustivo de todas as plantas de semente conhecidas até então. 

No dia seguinte ao trágico ataque da guarda, a população queria evitar a todo o custo mais mortes. Decide-se, por esse motivo, cortar todos os pés de videira. Mas dois anos mais tarde o vinho voltaria a crescer em abundância: o corte tinha fortalecido as videiras. Em Válega, quando alguém não se sente bem, diz-se que “está com a floxera”, numa adaptação popular da doença da videira, a filoxera. Talvez seja esta a forma mais bonita de unir as vidas arrancadas pela raiz, ou a lembrança mais subtil do destino comum de uma videira e de quem a cultiva.​​​​​




Voltar

27 maio 2024
maio maio edições